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Órfãos do feminicídio: 2,5 mil crianças e adolescentes perderam a mãe em 2022

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(Divulgação/Getty Images)

Depois de uma discussão banal, uma desavença entre adolescentes, a estudante Safira Ferreira da Silveira, de 16 anos, levou um tiro na cabeça em Manaus. O disparo foi dado pelo namorado, um jovem de 18 anos que até então não dava sinais de agressividade, apesar das brigas recorrentes.

Juntos há cerca de oito meses, o casal havia recém-mudado para a mesma casa e, naquela noite de junho de 2021, discordavam porque ele queria sair com os amigos, contra a vontade dela. Safira foi socorrida pelos familiares do companheiro, mas morreu no hospital.

Safira deixou Sofia, filha de apenas dois meses – uma idade em que o bebê nem sequer entende que nasceu e, para se sentir protegido, demanda o contato constante de seu corpo com o da mãe.

“Durante três meses, ela chorou dia e noite sem parar, acho que sentia falta da “quentura” da minha filha”, lembra a dona de casa Sara Regina, de 38 anos, mãe de Safira e que assumiu a guarda da neta Sofia. “Eu dava leite, mingau, mas nada resolvia. Nas madrugadas, eu sentava e chorava junto com ela”.

Retrato do feminicídio no Brasil

Em 2022, o Brasil registrou o trágico recorde do número de feminicídios, desde que o indicador é medido. Foram 1.437 vítimas, um aumento de 6,1% em relação ao ano anterior, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Não existe uma estatística oficial de órfãos desses crimes. No entanto, com base na taxa brasileira de fecundidade estimada pelo IBGE, é possível dizer que pelo menos 2.529 crianças e adolescentes perderam suas mães em um único ano.

Perfil das vítimas

Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lembra que a vítima de feminicídios é, em geral, negra, encontra-se em idade reprodutiva e em condição econômica precária – muitas delas com filhos, e filhos menores de idade.

“Como o autor é quase sempre o parceiro íntimo da vítima, as crianças ficam órfãs de ambos os lados. Porque o pai ou vai preso ou se suicida. Essa criança acaba ficando com a avó ou algum familiar. Precisamos pensar em políticas de transferência de renda para o acolhimento dessas crianças”, afirmou ela.

O que é feminicídio?

Pela definição, feminicídio é toda morte decorrente de violência doméstica ou motivada pela discriminação da “condição” do sexo feminino, conceito usado pela primeira vez na década de 1970.

No Brasil, uma lei de março de 2015 alterou o Código Penal Brasileiro e incluiu o feminicídio como uma das formas qualificadas de homicídio.

Os órfãos do feminicídio, na maioria dos casos, ficam com a família materna. O país não conta com políticas públicas específicas para essas crianças e adolescentes.

‘Jogada como um cachorro’

Na noite da briga, Sara recebeu uma ligação da sogra da filha dizendo que uma tragédia havia acontecido. Sara pediu um carro por aplicativo e percorreu alguns hospitais até encontrar Safira. Na recepção, informaram que uma moça com as características da adolescente havia dado entrada “toda ensanguentada”.

Segundo Sara, os familiares do assassino levaram Safira de moto “praticamente morta”, “jogaram no hospital como se fosse um cachorro” e foram embora. Demoraram para prestar socorro.

Safira estava em cima de uma maca, já entubada, quando um policial se aproximou de Sara e a aconselhou a deixá-la ali para ir atrás da neta.

“Enquanto o assassino ficou foragido, a ex-sogra da minha filha pegou minha netinha e saiu de casa. Quando minha filha faleceu, liguei para ela e pedi: só quero que você entregue a Sofia de volta”, contou.

Dias depois, o rapaz se entregou e alegou que o tiro foi acidental. Ele está preso e foi condenado a 13 anos.

Os órgãos do feminicídio

A ex-sogra de Safira devolveu a menina. Com medo de ser linchada, pediu a uma conhecida para levar a bebê até uma delegacia. De qualquer forma, a mulher não tinha direito de ficar com Sofia porque o assassino não é pai biológico dela.

Sara acolheu a neta numa casa que já abrigava dois de seus oito filhos e o marido. Vivem somente da renda dele, já que ela está desempregada.

“Perder um filho é uma dor para a vida toda, a gente nunca esquece”, disse Sara que, dois anos depois do assassinato de Safira, ainda chora ao lembrar da tragédia. “Minha netinha é a única coisa que me conforta”.

Política focada

Diante da ausência de políticas voltadas a órfãos como Sofia, a Defensoria Pública do Amazonas criou, em 2018, um projeto dedicado a prestar assistências jurídica e psicossocial às famílias das vítimas de feminicídio – em especial às crianças e adolescentes que ficaram.

Oferecem auxílio, por exemplo, nos pedidos de guarda, pensão alimentícia e até de reconhecimento de paternidade. Até hoje, o programa ajudou 17 filhos de mulheres mortas por feminicídio. Em 2021, a iniciativa foi vencedora do Prêmio Innovare, que reconhece boas práticas no Judiciário.

A defensora pública Caroline Braz, coordenadora do projeto, conta que esse auxílio começou depois que o órgão se deparou com um caso em que o agressor estava recebendo a pensão previdenciária da vítima enquanto as crianças passavam privações financeiras com a avó.

“A ideia é que a defensoria vire um ponto de acolhimento para esta família que está perdida, resolvendo todas as questões jurídicas”, explicou Caroline. “O apoio psicossocial também é fundamental, porque muitas das crianças presenciaram o feminicídio e ficam com problema para dormir, na escola…”.

Como não existe um protocolo para que as delegacias encaminhem os feminicídios para a Defensoria, a equipe precisa fazer a busca ativa dos casos, a partir de informações divulgadas na imprensa. Há dois anos, o órgão protocolou um projeto de lei estadual para requisitar auxílio financeiro às vítimas de feminicídio.

No âmbito federal, alguns projetos de lei pretendem garantir atendimento prioritário a crianças e adolescentes órfãos em razão de feminicídio no Sistema único de Saúde (SUS), no acesso à Justiça, na matrícula em escolas, entre outros serviços públicos. Um deles, aprovado pela Câmara dos Deputados em março, garante uma pensão aos órfãos de um salário mínimo, até completarem 18 anos. O texto ainda será analisado pelo Senado.

‘Típica família cristã’
A última vez que o analista Joabe Caldas, de 26 anos, falou com a mãe, foi por mensagem de texto. Recém-separada do marido com quem foi casada por mais de três décadas, Rozélia Caldas, de 51 anos, voltaria de viagem naquela madrugada. “Está vindo?”, perguntou o filho. “Estou chegando”, ela respondeu, com uma série de emojis de coração.

Caldas foi dormir e não encontrou a mãe em casa, na cidade de Araucária, no Paraná, na manhã seguinte. Mandou mensagens e ligou, sem retorno. Lembrou imediatamente da brincadeira de um amigo: se alguma tragédia aconteceu, você vai encontrar em sites de notícia.

Assim descobriu, em uma live de uma página policial, que sua mãe havia sido assassinada. Não bastasse o baque da morte, nas horas seguintes, ele saberia que o mandante foi seu próprio pai.

“Éramos a típica família cristã. Quando minha mãe decidiu se separar, trouxe à tona muitas coisas, como o fato de que meu pai já tinha tentado bater nela. Ele sempre foi um ótimo pai, mas falhou muito como marido”, afirmou Caldas.

O analista conta que tudo ocorreu de forma bastante “sorrateira”. No dia anterior ao assassinato, em janeiro deste ano, o pai reuniu os filhos para dizer que deixaria Rozélia “seguir sua vida”. Foi a última conversa que teve com ele.

Na tentativa de fingir normalidade, o homem se mostrou surpreso com a notícia, foi ao enterro e depôs. Mas logo os indícios apontaram para ele. Além de Caldas, Rozélia deixou mais duas filhas, de 31 anos e 21 anos. Num único dia, é como se os três tivessem perdido a mãe e também o pai, com quem nunca mais falaram.

“Minha irmã mais velha toma cinco remédios. A mais nova, dois. Eu trabalhava num emprego legal, dava conta. Agora não consigo mais. A falta que ela faz não dá para descrever. Sinto o tempo todo. Desde quando vou dar um passeio até quando estou mal e não a tenho por perto”, disse Caldas.

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