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A crise com o Irã é mais um sinal de que os países estão agindo cada vez mais por si sós, em vez de buscar soluções em conjunto para os conflitos globais

Hassan Rouhani, presidente do Irã: o país é cada vez mais pressionado pelos americanos (Iranian Presidency/Handout/Anadolu Agency/Exame)

Num duro discurso contra o Irã em maio de 2018o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, justificou a decisão do presidente Donald Trump, algumas semanas antes, de deixar o acordo nuclear com o Irã, assinado em 2015. Para ele, daquele momento em diante, os Estados Unidos adotariam uma política de “pressão máxima” sobre o regime iraniano com o objetivo de estrangular o país financeiramente e fazer com que os iranianos aceitassem imposições americanas mais rígidas. Nas palavras de Pompeo, o Irã não teria mais “carta branca” para armar grupos pelo Oriente Médio que, volta e meia, faziam ataques contra alvos americanos e de seus aliados. Entretanto, em vez de uma redução da violência, o que se viu de lá para cá foi uma escalada nas ofensivas patrocinadas pelo Irã, numa espécie de guerra terceirizada, algo que trouxe ainda mais instabilidade. A recente crise no começo de 2020 que, por pouco, não levou a uma nova guerra no Oriente Médio foi o ápice da política de intimidação sobre o Irã, que vem ficando sem saídas. Ou o país se senta para negociar, ou intensifica seus ataques ao mesmo tempo que retoma o programa nuclear, como os líderes iranianos ameaçam fazer. Num mundo já impactado pelo aumento do nacionalismo e do protecionismo, a tensão no Oriente Médio é um péssimo começo de ano.

Donald Trump, dos Estados Unidos: menosprezo pelas instituições internacionais | Jonathan Ernst/rReuters

O que chama a atenção nessa crise é que nada disso seria necessário se os Estados Unidos não tivessem saído do acordo nuclear, assinado em conjunto com Reino Unido, França, Rússia, China — que são membros do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas — mais a Alemanha. O Irã vinha cumprindo seus compromissos desde 2015, mas Trump acreditava que o acordo, costurado pelo ex-presidente Barack Obama, era favorável demais aos iranianos. A decisão de Trump colocou os Estados Unidos e os países europeus em lados opostos. Enquanto os americanos partiram para a coação, a Europa optou por negociar e tentar salvar o acordo. É por isso que nenhum dos países europeus nem a China apoiaram o ataque americano que matou o general iraniano Qassem Soleimani. Assim como os europeus, as organizações internacionais, como as Nações Unidas ou a aliança militar da Otan, foram pegas de surpresa. “Essas organizações não estão unidas e os Estados Unidos desempenham um papel relevante na maioria delas, dificultando uma reação coordenada”, diz Robert Jervis, professor de política internacional na Universidade Colúmbia, em Nova York.

Se fosse um caso isolado, a opção dos Estados Unidos de agir sozinhos na crise do Irã, sem buscar apoio dos aliados ou da comunidade internacional, poderia ser esquecida com o passar do tempo. Mas o que se vê é que esse tipo de atitude tem se tornado o padrão no mundo, principalmente depois da chegada de Trump à Casa Branca há três anos. Em vez de buscar soluções em conjunto com os demais países e organizações multilaterais, os Estados Unidos e outros países têm preferido resolver seus conflitos com as próprias mãos, de forma unilateral. A guerra comercial com a China é um bom exemplo. A iniciativa de aumentar as tarifas não foi  debatida nem submetida à aprovação da Organização Mundial do Comércio (OMC), que tem o papel de arbitrar as quedas de braço no comércio internacional. Os Estados Unidos, inclusive, têm bloqueado a nomeação de juízes para o órgão de apelação da OMC, que está paralisado desde dezembro.

O presidente Trump nunca escondeu o menosprezo pelas instituições multilaterais. Em seu governo, o presidente americano abandonou tratados internacionais, como o Acordo de Paris. Deixou acordos comerciais, como a Parceria Trans-Pacífico. E criticou duramente a Otan e a ONU. Para os especialistas, a avaliação é que os Estados Unidos estão se distanciando cada vez mais de sua tradicional posição de garantidor da ordem internacional, função que vinha exercendo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e que coincidiu com um dos períodos de maior prosperidade no mundo. “Com o crescimento do nacionalismo e do protecionismo globalmente, em especial nos países do Ocidente, há dúvidas se os Estados Unidos vão apoiar e liderar as instituições internacionais. Isso levanta sérias questões sobre a continuidade do sistema multilateral”, diz Edward Newman, professor de segurança internacional na Universidade de Leeds, na Inglaterra, e especialista no tema.

Angela Merkel, da Alemanha, e Vladimir Putin, da Rússia: os demais países buscam salvar o acordo nuclear com o Irã | Pavel Golovkin/Pool via Reuters

Como são a maior força militar e econômica do planeta, é verdade que os Estados Unidos se acostumaram a agir como se estivessem acima das regras internacionais, como ocorreu na invasão do Iraque em 2003. No entanto, existia um entendimento comum de que as instituições globais ajudavam a promover a prosperidade e a liberdade em todos os países, e isso, no fim, era benéfico para os próprios americanos. Essa visão se enfraqueceu. Sem o apoio dos americanos nem de governos liderados por políticos nacionalistas mundo afora, a tendência é que organizações e tratados internacionais percam ainda mais a importância.

Com os países mais avessos a trabalhar uns com os outros, o temor é que o mundo esteja caminhando para um novo ambiente, em que haja menos cooperação, menos integração global e menos trocas comerciais. Durante boa parte de 2019, o comércio internacional ficou praticamente estagnado e até chegou a retrair em alguns meses. Além disso, a quantidade de recursos que as empresas investem em países no exterior (o chamado fluxo de investimento estrangeiro direto) tem caído desde 2015, segundo a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).

Com o multilateralismo e a cooperação internacional relegados a segundo plano, quem perde são principalmente os países em desenvolvimento, como o Brasil, que conseguiam ser uma voz importante nos fóruns de discussão internacionais. Para os países do Oriente Médio, há ainda o temor de um progressivo esfacelamento da segurança e aumento da força de grupos paramilitares. Milícias iraquianas apoiadas pelo Irã já anunciaram que poderão planejar ações contra tropas americanas estacionadas no país (no dia 14 de janeiro novos foguetes atingiram uma base iraquiana perto de Bagdá que abriga militares americanos). “A tendência é que seja criada uma nova ordem geopolítica na região e no mundo, com uma proliferação de atos de terrorismo praticados por grupos contrários aos Estados Unidos”, diz o analista político iraquiano Dlawer Ala’Aldeen, presidente do Middle East Research Institute, no Iraque. “Sem uma mediação internacional, os países podem se ver cada vez mais mergulhados em crises domésticas.”

O Irã não é uma exceção. Desde novembro, jovens têm ido às ruas protestar contra o governo e medidas impopulares, como o aumento do preço do combustível. No ano passado, a economia do Irã encolheu cerca de 9,5%, segundo projeções do Fundo Monetário Internacional, em grande parte devido às sanções econômicas dos Estados Unidos. As manifestações ganharam novo fôlego depois de o governo reconhecer ter abatido por engano o avião comercial da Ukraine International Airlines. Até agora, há poucos sinais de um movimento internacional para conter a crise. O mundo ficou um pouco mais inseguro.

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